Este é o lugar
Nao me ocorre nada mais que possa expressar o que senti
Este é o lugar
Nicarágua
O país que sinto dentro de mim há anos
Que me chama com uma voz silenciosa

Cheguei
E com uma tranquilidade estranha caminhámos
As ruas onde imaginava confusão estavam em paz e as pessoas onde idealizei insegurança trouxeram-me sorrisos
Casas de palha
Crianças no trânsito fazem malabarismos comoventes de quem precisa de comer
E a praia… quando eu pisei esta praia senti
Que este é o lugar
O lugar onde ao final de um ano senti um arrepio…
Nicarágua ainda agora cheguei
Mas este sentimento fez valer todas as batalhas, todas as ondas assustadoras que bateram na minha cara, todos os cabos puxados com nervoso e adrenalina, todas as imagens de um mar sem fim que atravessei.
Nicarágua
Obrigada por este dia
Por este sentimento que já nasceu em mim
E que por aqui ficará eternamente
Quando penso de que vale uma vida
É destes momentos que falo
Estas conexões estranhas
Sinto-me fora de mim
Oiço as rãs, os sapos, e aquilo a que chamo a vida passar por mim.
Hoje é o dia
Aquele dia que irei recordar
A água quente e forte que me seduz
O brilho seco e nublado da areia
A lava que num encontro forte se eternizou

Este é o lugar
Nicarágua recebeste-me com amor

………………
Nicarágua Day 12
(Hospital Nicarágua- Apendicite do Francisco com intervenção urgente e peritonite aguda.
Reflexões finais de uma semana de internamento)

Aqui ouves um choro contínuo que te atordoa a alma
Rostos sofridos de quem não tem amparo
No suor dos corredores camas que interpelam o caminho, crianças doentes com um olhar escasso, mães cansadas que desistem de lutar.
Num misto de sentimentos, aqui contínuo. No conforto de um quarto onde apenas partilho sorrisos e mimos, histórias e canções de embalar. Com o fresco chegamos a precisar de dois lençóis para nos aquecermos na alegria da noite onde prometemos amor eterno.
Os olhares passam por aqui, como quem vê uma casa bonita que nunca poderá ter, um jardim florido que pode olhar sem tocar, um prato de comida que nunca terá dinheiro para comer.
Eu num rasgo de egoísmo louco aceito a diferença do meu tratamento. Na voracidade de querer ver o meu filho bom, fico feliz por ter uma equipa atenta e com todos os cuidados.
Mas por dentro, aqui bem fundo no meu peito, sinto uma injustiça tremenda de quem nunca terá estas regalias.
De quem vive uma vida sem as sentir, sem um gesto de vassalagem, sem um sentimento de importância.
O mundo não é igual para todos.
O carro da comida chega e as tentativas de conseguir alcançar um tabuleiro são avassaladoras. Se consegues retirar um a mais à socapa comes, senão terás de partilhar com o teu filho.
Um alvoroço no corredor te faz espreitar, mas logo devias o olhar perante mais um sofrimento que tenta ser salvo. Mais uma mãe estagnada numa dormência que já nao te deixa ter grande reacção.
As mesas ao lado das camas estão vazias, uma sacola velha, uma água e sacos de plástico cheios nem se percebe bem do quê.
Resignadas passeam pelos corredores com as suas crias e procuram o meu olhar, obter um sorriso meu ou uma palavra trocada já as deixa felizes com um sentimento de empatia de alguém que vêem como distante.
A minha vida continua
O meu filho ficou bom
Mas aquilo que vivi e senti não será esquecido nunca.
E a vocês que passaram a procurar o meu olhar vezes sem conta…eu espero que o meu amor tenha sido suficiente pois naqueles momentos de angústia eu não tive capacidade para mais.

……………..

NICARÁGUA day 34

Sentou-se à mesa connosco

A fome encontra-se no olhar
Espera por nós
Numa vergonha que já nem sente
Traz um saco de plástico…preparado para as sobras, e como um cão espera a sua sorte
Com medo, encostado e invisível ali fica
Tento dar alguma dignidade àquele momento, que padece de justiça
Insisto novamente para se sentar
Para ser o nosso convidado especial
Fico incomodada
Levanto-me e vou comprar um prato limpo, novo e como merece.
A dignidade ficou lá atrás no tempo.
Come com uma velocidade arrepiante
Não conseguindo aceitar o olhar da dignidade.
Este confronto cresce comigo
Esta injustiça não me deixa dormir
Porque quando deixar é porque algo de errado e fortemente desumano se passa comigo
É porque adormeci… e eu não quero passar a vida numa dormência parva voltada para a etiqueta de uma mala ou o carro onde pouso o meu rabo, muito menos ao ar emproado que ouso fazer numa loja qualquer… achando-me alguma coisa.

Sim… ía numa primeira classe se ganhasse o euro milhões, jantava em sítios caros, tinha uma casa bonita, e fazia as viagens e excentricidades que bem me apetecia… sem hipocrisia. Assumidamente

Mas seria, sou incapaz de superficialidades em demasia…que nada me acrescentam. Quando ao sentar este homem na minha mesa consegui encher o meu coração com a certeza de que hoje… hoje não passou fome.
Deixou-me uma tremenda dor de cabeça
Uma enorme capacidade para reflectir
Saber que Não temos todos a mesma passagem pela vida

Amanhã farei igual… e até sair daqui… que eu não ouse comer sem sentar alguém à minha mesa.

Que os meus filhos sintam que o bem está ao alcance de todos e que podemos dividir e no final de uma refeição… ficar sempre mais cheios. De uma sensação que nenhuma comida nos faz.
De uma liberdade e um sorriso que só intimamente conseguimos expressar

Continuo sem mudar o mundo
Mas o mundo insiste em me mudar a mim.

Nicarágua Setembro/Outubro 2021

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